segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Os processos "C" e "S" de regulação do Sono

Para preparar para a leitura do próximo texto "Só mais dez minutos" decidi fazer uma descrição sobre o modelo que usamos para explicar como o sono é regulado. A ideia é que as pessoas encontrem aqui informações sobre o que é chamado de Processo Circadiano (Processo C) e Processo Homeostático (Processo S) de regulação do sono. O modelo que explica esses dois processos foi proposto por Borbély em 1982 com o trabalho intitulado "A two process model of sleep regulation" O modelo de dois processos para a regulação do sono. Veja a figura abaixo para um esquema didático do modelo.
Figura 1. Modelo de dois processos de regulação do sono. Em azul claro representado 24h de um dia. Em cinza uma curva representando o Processo "S" de regulação do sono se acumulando ao longo do dia e sendo dissipado durante o sono. Os clip-art de sol e lua formam a curva que representa o processo "C" de regulação do sono. Em Vermelho outra curva representando a propensão ao sono consequente da ação dos dois processos "C" e "S". As duas setas violetas indicam os dois principais portões do sono. 
Ainda está complicado? Então faremos como o Jack, vamos por partes!
Para entender como funciona essa regulação precisamos entender o que a palavra "Circadiano" significa. A palavra tem origem no latim "Circa - cerca de" e "diem - dia", sendo assim "Circadiano" significa cerca de um dia. Cronobiologicamente falando, usamos o termo para representar ritmos biológicos com período próximo a 24 horas.
Sendo assim, o processo Circadiano está relacionado com a regulagem do momento que devemos dormir. Ou seja, é ele que indicaria para o corpo quando está claro, ou escuro. Como somos animais diurnos temos a tendência de dormir a noite. Então a propensão ao sono, relacionada ao processo circadiano fica aumentada durante a noite.
Agora podemos olhar com atenção o diagrama a seguir que mostra apenas a participação do processo "C" na regulação do sono.
Figura 2. Processo Circadiano da Regulação do Sono. Os clip-art sol e lua indicam a variação diária do ciclo claro/escuro.  Estes formam uma curva que também indica a propensão ao sono ao longo de 24h se considerado apenas a participação do processo Circadiano.
Para simplificar as coisas mais do que já simplifiquei podemos pensar no processo Circadiano como a regulação feita pelo ciclo claro/escuro. Quando está claro nossa propensão ao sono diminui e tendemos a ficar mais alertas, o inverso ocorre quando está escuro.
E o processo Homeostático, também chamado de Processo "S"? Aqui também discutiremos primeiro o que significa a palavra "homeostático". O termo vem de "homeostasia" que na fisiologia clássica é definida como "a manutenção das condições internas dos organismos constante". Mas eu prefiro pensar em homeostasia como de um modo menos clássico. Mais uma vez vamos por partes. O termo, homeostasia, deriva do grego "homeo - semelhante" e "stasis - situação", portanto, "homeostasia - situação semelhante".
A ideia que quero passar aqui é que a homeostasia compreende todos os processos e regulações necessários para a manutenção do organismo.
Chega de confusão e vamos voltar para o Processo "S". O que Borbély quer representar com esse processo é que além da regulação circadiana, o sono é regulado pelo acúmulo do seu débito. Como assim? Quanto mais acordado se fica, mais se acumula a necessidade de dormir, até chegar em um momento que o acúmulo fica insuportável e as criaturas dormem. Agora é hora de observar mais um esquema!

Figura 3. Processo de Regulação Homeostática do Sono. Em cinza uma curva indicando o acúmulo e dissipação da necessidade de dormir ao longo das 24h.
Algumas pessoas podem perguntar "é como acumular uma substância?" Eu diria que é quase isso, não é apenas uma substância porque o sono é um comportamento que envolve todo o corpo, mas se fosse para escolher uma, e apenas uma substância como indicadora do processo "S" eu e todo o referencial bibliográfico que tenho lido escolheria a adenosina. Mas isso é assunto para outro texto.
E quando é que dormimos? Finalmente, dormimos quando os dois processos apontarem para a mesma direção, ou seja, quando o processo "C" indicar que é momento de dormir e quando o processo "S" indicar que já acumulamos necessidade de sono suficiente para dormir! Volte para a figura 1!!!

Até lá eu ficarei escrevendo e sim, eu aceito críticas e sugestões! ;-p)

ResearchBlogging.org
Borbély AA (1982). A two process model of sleep regulation. Human neurobiology, 1 (3), 195-204 PMID: 7185792

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Cérebro Sonâmbulo.

O que acontece com neurônios corticais de animais que ficam privados de sono? Será que, individualmente, eles podem dormir enquanto outros neurônios, de outras áreas do córtex, permanecem acordados? Se isso acontece, há então neurônios sonâmbulos? Se existirem neurônios sonâmbulos seria possível existir um cérebro sonâmbulo com populações de neurônios que dormem enquanto outras estão ativas? E se isso acontecer, será que há prejuízo para o desempenho cognitivo? Ou melhor, seria essa uma possível explicação para a queda no desempenho cognitivo quando se está sonolento?

Foi com essas perguntas em mente que comecei a leitura do artigo Local Sleep in Awake Rats
desenvolvido pelo pesquisador Vladyslav V. Vyazovskiy e colegas do laboratório liderado por Giulio Tononi  publicado na revista Nature. Utilizando de um sistema de microeletrodos eles registraram tanto o potencial de campo local de uma população de neurônios como o que eles chamam de atividade multi-unitária (MUA - que registra o padrão de disparo de neurônios individuais), em momentos de vigília e sono espontâneos. O que eles queriam era saber se neurônios corticais de ratos podem exibir estados de inativação (Off) durante a vigília, semelhante aos que são observados em momentos de sono NREM quando são registradas as famosas ondas lentas.
Clique para descobrir a fonte!
Para minha surpresa, as conclusões desse trabalho respondem quase todas as minhas questões. Quando os animais foram privados de sono (SD4 - 4 horas de privação) houve uma mudança no potencial de campo local (LFP na figura 2) de alguns neurônios registrados, quer dizer, com a privação de sono começaram a surgir ondas lentas locais, coerentes com a ausência de disparo neuronais (note a falha na porção inferior do retângulo da figura 2c). Interessante notar que antes da privação de sono esse tipo de onda lenta não foi observado. Desse modo,  algumas perguntas foram respondidas, neurônios individuais e populações de neurônios ficam "Off" após privação de sono enquanto outros permanecem "online". Parece que existe sim neurônios sonâmbulos!

Figura 2. Períodos "Off" durante a vigília e o sono NREM. a) Registro de LFP do córtex frontal e  raster plot do MUA. b)Esquerda- força espectral para ondas theta/slow (2-6Hz), Direita-Força espectral para  atividades de ondas lentas (0.5-2Hz). c) Mudanças de estados On e Off. *Atenção para área destacada. Fonte: http://www.nature.com/nature/journal/v472/n7344/carousel/nature10009-f1.2.jpg

Como se não bastasse esse achado fantástico, tem mais! Não contentes em saber que neurônios podem ficar "Off" durante a vigília, os pesquisadores tentaram identificar se esses estados são globais ou locais. Para isso foram necessários mais alguns animais, agora com matrizes de microeletrodos posicionados em regiões diferentes do cérebro. Uma matriz registrava os padrões elétricos da porção mais frontal e outro de uma região mais parietal. Resultado? Quando os animais foram privados de sono por 4 horas foi possível observar a existência de surtos globais, mas também surtos locais de neurônios em estado "Off"! Mais interessante ainda foi notar que quanto maior a privação mais global se torna esse fenômeno.
Figura 3 - Períodos de sono local em ratos acordados. Fonte: http://www.nature.com/nature/journal/v472/n7344/carousel/nature10009-f2.2.jpg
Outra novidade interessante é que aparentemente o sono não é um evento tão sincronizado como se pensava. Note na figura 3 que durante o sono de ondas lentas existem atividade de ondas lentas globais, mas também existe ondas lentas locais. E durante o sono o que ocorre é que quanto mais se dorme mais local se torna o evento. Ou seja, há uma dissipação da atividade de ondas lentas no decorrer da noite.
Mais perguntas respondidas! E agora? Será que há uma correlação entre o número de neurônios em estado "Off" e o baixo desempenho cognitivo?
Segundo esse estudo, SIM! Animais privados de sono não apenas demonstraram pior desempenho em uma tarefa cognitiva como foi possível correlacionar os erros cometidos por esses animais com momentos "Off" de neurônios do córtex frontal! Sim, neurônios localizados na região cerebral associada ao planejamento!

Conclusão: Esses eventos "Off" que o autor chama de "sono localizado" podem representar um processo adaptativo, se pensarmos que em alguns cetáceos e em algumas aves um hemisfério pode dormir enquanto o outro permanece acordado para dar conta dos movimentos necessários para continuarem nadando ou voando. Seria mal adaptativa se interpretada como os estados comportamentais dissociados como o sonambulismo (verdadeiro) e algumas parassonias.
Questões em aberto: Será que esse mesmo padrão acontece em humanos? Poderia isso explicar o "cansaço" cognitivo após longos períodos de vigília?

Vou esperar para ver...

Esse foi mais um:


ResearchBlogging.org
Vyazovskiy VV, Olcese U, Hanlon EC, Nir Y, Cirelli C, & Tononi G (2011). Local sleep in awake rats. Nature, 472 (7344), 443-7 PMID: 21525926

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Vou xingar muito no Twitter... e parar na Science!

Ei você twitteiro que adora extravasar suas emoções na rede atenção, suas frases em inglês xingar muito no twitter podem ter reverberado e parado em um artigo da Science.
Já parou para pensar quantas vezes por dia você extravasa suas emoções em 140 caracteres?
A dupla de cientistas Scott A. Golder e Michael W. Macy da Cornell University teve uma sacada muito interessante. Eles decidiram avaliar o conteúdo emocional de frases postadas no twitter por usuários do mundo inteiro. Para isso eles montaram um banco de dados, contendo mais de 500 milhões de mensagens de cerca de 2,4 milhões de indivíduos. Em seguida, eles contaram com a ajuda de um software que faz análise do conteúdo léxico de textos (o LIWC) para avaliar o conteúdo emocional dessas "twittadas".
Com a ajuda do LIWC eles classificaram as frases que continham conteúdo emocional positivo (EP), tais como entusiasmo, prazer, alerta, e frases que continham conteúdo emocional negativo (NP) que inclui angústia, raiva, medo, culpa, desgosto, entre outros.
Após essa classificação os cientistas focaram suas análises em outros fatores, tais como o momento do dia e a localização geográfica. Com isso eles observaram que existe uma variação no humor ao longo do dia. Segundo esse estudo, os humanos expressam maior conteúdo emocional positivo em dois momentos do dia, um deles no início da manhã (entre 6h e 9h) e outro pico à noite (por volta das 24h). Além disso, eles também observaram que o menor índice de "twittadas" cujo conteúdo emocional era negativo ocorre no começo da manhã e cresce ao longo do dia até atingir seu pico durante a noite (por volta das 24h).
Fig 1. Variação horária da emoção dividido por dia da semana (superior PA = EP, inferior NA = EN), linhas pretas mostram as médias e 95% de intervalo de confiança nas regiões coloridas. Retirado do original que a Science me perdoe.
Uma conclusão precipitada seria: "ah, isso é óbvio, as pessoas acordam bem humoradas, vão para o trabalho e ficam estressadas, consequentemente xingam muito no twitter ficam mau humoradas." Mas não é exatamente essa a conclusão do estudo. Como eles também avaliaram as "twittadas" durante o final de semana, e foi possível observar o mesmo ritmo de variação circadiana do humor, com um atraso de duas horas, desse modo, parece claro que a variação do humor ao longo do dia é independente do fator trabalho. Provavelmente essa piora esteja relacionada ao sono, algo como a relação quanto mais tempo acordados mais mau humorados. Concorndando com a ideia de que privação de sono gera sonolência e pessoas sonolentas são mais irritadas.
Além disso, o trabalho sugere que essa variação circadiana do humor é uma característica bastante forte da espécie humana, mantendo-se presente nas mais variadas culturas. A figura 2 apresenta a variação horária do humor para quatro regiões distintas. Pode-se notar que o ritmo se mantém independe dos fatores culturais.
Variação horária do humor dividido em quatro grandes áreas de falantes de inglês.  Retirado do original .
Bonito, não? O que faz desse trabalho tão diferente do que já foi feito em estudos que avaliam o humor é a forma como foi obtido o dado. Estudos clássicos realizados em laboratório contam com  mais informações a respeito dos sujeitos, no entanto, é diferente quando você perguntar para uma pessoa "Como você está se sentindo agora?"  do que quando uma pessoa, espontaneamente, xinga muito no twitter expressa sua emoção.
A beleza do resultado desse trabalho está aí, estudar o comportamento humano em seu ambiente virtual natural, com sua apresentação espontânea e livre de manipulações ou simulações que eventualmente acontecem em laboratórios.
Será que tem alguém estudando as relações sociais utilizando essas redes virtuais? Quando tiver tempo darei um "google" nisso para ver o que encontro.


ResearchBlogging.org
Golder SA, & Macy MW (2011). Diurnal and seasonal mood vary with work, sleep, and daylength across diverse cultures. Science (New York, N.Y.), 333 (6051), 1878-81 PMID: 21960633