terça-feira, 31 de maio de 2011

Dormir, sonhar e lembrar - Parte 3 O sono e a memória

Encerrei o último post prometendo falar sobre sobre o paper "Odor Cues During Slow-Wave Sleep Prompt Declarative Memory Consolidation". A ideia aqui é demonstrar que o sono participa da consolidação da memória. A tradução para o título do trabalho pode ser: Pistas olfativas durante o sono de ondas lentas promove consolidação de memória declarativa.

O que o grupo, liderado pelo pesquisador alemão Jan Born, fez foi algo bastante simples, porém muito astuto. Sabendo que cheiros possuem um alto potencial como pistas contextuais, inclusive para memórias visuo-espaciais (como por exempo um jogo da memória, aquele para crianças), eles treinaram sujeitos em um desses jogos de memória e adicionaram  e adicionaram um cheiro agradável a cada resposta correta. Mais importante que isso, durante os dois primeiros períodos de sono de ondas lentas os sujeitos foram novamente expostos ao mesmo cheiro. É importante notar que a opção por pistas olfativas foi determinante para o sucesso do experimento, pois em contraste com outros estímulos, é sabido que cheiros podem ser apresentados sem perturbar o sono (mais detalhes sobre isso aqui). O esquema abaixo demonstra o protocolo experimental. Clique para ampliar!


Sendo assim, a hipótese desse trabalho é: Um contexto olfativo apresentado durante o aprendizado da tarefa, é capaz de potencializar a consolidação se apresentado novamente durante o sono. Para ter certeza disso é necessário testar todas as possibilidades. Hora de observar a figura 2.

A figura 2 é um resumo do protocolo experimental utilizado para avaliar todas as hipóteses. O que quer dizer que os pesquisadores avaliaram o efeito da pista olfativa apresentada em diferentes momentos, clique na figura para observar com mais detalhes.
Mas e aí? Qual o grande resultado apresentado?
O que aconteceu foi que os sujeitos que receberam a pista olfativa durante o sono ondas lentas apresentaram melhor desempenho na manhã seguinte. Nenhum efeito do cheiro foi observado em nenhum dos outros 3 experimentos, de modo que quando o cheiro foi apresentado durante sono REM, ou quando o cheiro foi apresentado antes do sono, não há nenhuma alteração na consolidação da memória. A conclusão prévia é simples, alguma coisa acontece durante o sono de ondas lentas que possibilita um reforço na consolidação da memória quando apresentado uma pista olfativa.
Mas essa potencialização da consolidação acontece apenas para memórias declarativas? Para responder essa pergunta os pesquisadores realizaram o mesmo protocolo experimental, no entanto, ao invés de utilizar um teste de memória declarativa, eles realizaram uma tarefa motora (memória não-declárativa). O que aconteceu foi que os sujeitos que dormiram apresentaram melhor desempenho, e essa melhora foi independente da pista olfativa. Aprimorando a conclusão, o que parece é que o sono de ondas lentas é seletivo para consolidação de memórias declarativas.
Para tentar entender o que é que acontece, os pesquisadores forem um pouco mais além, eles utilizaram ressonância magnética funcional para avaliar se o odor era capaz de ativar as mesmas áreas relacionadas com memória declarativa (no caso o hipocampo). O que aconteceu foi que a exposição ao odor durante o sono de ondas lentas aumentou a ativação do hipocampo.

Esse trabalho é uma referência bastante importante para a Teoria do sistema de consolidação. Segundo essa teoria a memória é consolidada durante o sono devido a repetida reativação das áreas envolvidas com o que foi aprendido. Ainda segundo essa teoria, o sono de ondas lentas seria o momento no qual ocorrem essas reativações hipocampais e possibilitaria um diálogo sincronizado entre as áreas relacionadas à memória.

Nos próximos textos falarei sobre a teoria da homeostase sinpáptica, uma outra opção para explicar a participação do sono na consolidação da memória.

Referência:
- Odor Cues During Slow-Wave Sleep Prompt Declartive Memory Consolidation. Björn Rasch et al, Science 315, 1426 (2007); DOI: 10.1126/science.1138581

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Dormir, sonhar e lembrar - Parte 2 Lembrar, a memória

Dando continuidade (após um looooongo período de incubação) a série Dormir, Sonhar e Lembrar. Chegou o momento de falar um pouco sobre o Lembrar. O objetivo desse texto é definir o que é memória e começar a falar sobre o papel do sono sobre a memória. Não vou falar aqui sobre os mecanismos moleculares ou celulares da memória.
O que chamamos de memória, ou a habilidade para recordar coisas, pessoas, movimentos, lugares, número de telefone, data de nascimento, enfim essa capacidade de lembrar é um processo composto por três etapas diferentes: o aprendizado, a consolidação e a evocação.
O aprendizado pode ser definido por alguns neurocientistas como um processo neural através do qual uma experiência modifica um comportamento. Para o interesse desse texto é importante ter em mente que o aprendizado é uma experiência que pode ocasionar mudanças neuronais. A consolidação pode ser entendida como os processos neuronais (mudanças moleculares ou celulares nos neurônios) que ocorrem após o aprendizado. A evocação é o momento em que lembramos do que aprendemos, ou quando evocamos (sic) alguma memória, o que pode ser uma sequência de passos em uma dança, ou apenas o nome de uma pessoa.
É interessante notar que a evocação depende das mudanças neuronais ocorridas durante os processos de aprendizado e consolidação, algo como, quanto melhor o aprendizado, melhor a consolidação, e melhor a evocação.

Mas e aquela história de que temos vários tipos de memória? 
Sim, existe uma classificação para diferentes tipos de memória, a maioria dessas classificações tem o objetivo de facilitar o estudo. Então para facilitar o estudo da memória há sim sistemas de classificação, um sistema que é de acordo com a natureza da memória (o qual explicarei com mais detalhes) e outro que leva em consideração o tempo de duração da memória (que não receberá atenção por aqui - arbitrariedade minha).

Primeiro vou introduzir a figura de uma revisão do professor Robert Stickgold  - Sleep-Dependent Memory Consolidation.
Como é possível notar na figura acima, existem dois grandes "grupos" de memória. Memórias declarativas e Memórias não declarativas. A diferença básica entre as duas é que as declarativas são aquelas que podemos declarar que existem, como uma história ou o nome do seu carro. As memórias não-declarativas são aquelas normalmente utilizadas sem a consciência de que estão sendo utilizadas. Ficou confuso, eu sei, mas darei um exemplo que poderá ajudar. Quando caminhamos, não precisamos ter consciência de qual grupo muscular estamos movendo, o mesmo vale para quando andamos de bicicleta. Como vocês podem perceber, cada grande grupo pode ser sub-dividido em grupos menores, porém, para evitar a fadiga, falaremos destes outros grupos em outra oportunidade. O importante aqui é saber que memórias declarativas e memórias não-declarativas possuem diferentes sistemas de consolidação. O que quer dizer que utilizam diferentes estruturas neurais para serem arquivadas. Por que isso é importante? Entenderemos até o final da série! (suspense para manter o leitor, estilo Dan Brow).

E o que o sono tem a ver com tudo isso?
Além da importância do sono para a manutenção do alerta, e da capacidade de concentração, o sono exerce um papel fundamental na consolidação da memória. 
Para entender um pouco melhor como isso acontece, é necessário entender como são feitos os estudos que avaliam a participação do sono nos processos mnemônicos. 
Mas como avaliar isso? Como saber se o sono tem ou não participação na consolidação da memória?
Uma forma de descobrir isso é comparando o desempenho de pessoas que aprendem uma tarefa e depois do aprendizado vão dormir, com pessoas que ficam acordadas durante esse período. Veja no esquema abaixo que o treino pode ser seguido por um momento de sono, um momento de vigília e ainda um momento de privação de sono. A diferença entre a vigília e a privação de sono é que para ser privado de sono o sujeito deverá ser mantido acordado durante o período no qual deveria estar dormindo, ou seja, durante a noite. O que acontece nesse caso é que os estudos deixam de avaliar o papel do sono e passam a avaliar o que acontece com a memória quando o sujeito é privado de sono.

 Utilizando protocolos experimentais bastante semelhante a esse que exemplificado acima existe um grande número de estudos apontando para a participação do sono na memória. Com esse protocolo o que a maioria dos estudos conseguem concluir é: os sujeitos que dormiram apresentam melhor desempenho para o teste tal. Essa informação por si só já é bastante interessante, porém, ainda não resolve a grande pergunta "qual o papel do sono na memória?". Sabemos que quem dorme apresenta melhor desempenho, mas será que apresenta melhor desempenho porque estava em melhores condições quando evocou a memória? Ou será que durante o sono acontece algo que ajuda a consolidação da memória?

Para tentar responder essas duas últimas perguntas um grupo de cientistas alemães modificou um pouco o protocolo "padrão" e adicionou uma pista de cheiro durante o treino e durante o sono. O próximo passo é falar do artigo original "Odor Cues During Slow-Wave sleep Prompt Declarative Memory Consolidation". 

Mas esse será o assunto do próximo post.

"Duas postagens em menos de 24h! Sim, sigo andando em frente."

domingo, 29 de maio de 2011

Adendo - Ondas de um EEG

Encerrei o último texto apresentando um pequeno resumo de como seria um EEG nos diferentes estados cerebrais, dormindo e acordado.
Para entender um pouco melhor do que estou falando faremos como Jack Estripador, vamos por partes.


Para interpretarmos um sinal de EEG, falaremos em diferenças de frequência e amplitude de onda, mas o que é isso? (Vamos lembrar um pouco do que estudamos no ensino fundamental e médio)
Frequência de onda é o número que um evento ocorre, ou o número de ciclos de um evento, em um determinado tempo. Observem a figura abaixo e notem que a linha vermelha (no caso o evento) sobe e desce cerca de 5 vezes. Se esse evento se repetir 5 vezes em um segundo podemos considerar que é uma onda de 5 Hertz.


Já a amplitude de uma onda representa a magnitude de variação de uma oscilação, em termos mais simples, representa a "altura" de uma onda. Observem em destaque na figura abaixo.


Devo destacar que estes não são os únicos componentes de uma onda, no entanto, como o propósito aqui é apenas ajudar as pessoas a entenderem um pouco melhor o que são as ondas observadas em um traçado de EEG. Um traçado típico de um humano adulto apresentará ondas com voltagens entre 10 µV e 100µV (µV = micro Volt).


E para que serve toda essa história sobre amplitude e frequência?
Essas duas variáveis nos ajudam a identificar e diferencias as principais ondas observadas em um traçado de EEG. Essas ondas são identificadas pelo alfabeto grego (alfa, beta, gama, teta e delta).


Ondas Delta: frequência de até 4Hz e alta amplitude. São características do sono de ondas lentas fases 3 e 4 e podem ser observadas em regiões frontais em adultos e posteriores em crianças.


Ondas Teta: também são ondas de baixa frequência (entre 4 - e 8Hz). São características dos estágios 1 e 2 de sono não REM.


Ondas Alfa: apresentam frequência entre 8 e 13Hz. Vale a pena notar que existem ondas alfa de alta e baixa amplitude.Podem ser observadas em regiões posteriores da cabeça. Para o estagiamento de EEG durante a polissonografia, é importante notar que trechos contendo mais de 50% de ondas alfa devem ser compreendidos como vigília.




Ondas Beta: apresentam frequência maior que 13 - 30Hz. Podem ser observadas em ambos os lados da cabeça, e são mais evidentes em regiões frontais. São associadas ao estado de vigília. 



Ondas Gama: ondas de alta frequência, 30-100+Hz. Relacionadas ao córtex somatossensorial. Estudos sugerem associação entre memória de trabalho e ondas gama.


Apresentei aqui apenas uma visão geral das principais ondas presentes em um traço de EEG em momentos de vigília e sono. Durante as diferentes fases de sono ocorrem outros eventos que caracterizam cada fase, mas já falei um pouco disso em outro post e voltarei a falar disso futuramente.


"Sigo caminhando, lentamente, mas sempre avançando".